Hoje vou postar a reportagem que a Super Interessante fez sobre como vai modificando o perfil do consumidor. E a diz que no Brasil vive-se um momento Beach Boys com um atraso de meio século. Muito bom!
Comportamento
O fim da propriedade
Ter carro e casa é coisa do passado. A prioridade agora entre
os jovens no mundo desenvolvido é a diversão. Veja como isso está
mudando o mundo - e abrindo as portas para uma nova, e promissora,
economia
por Edição: Alexandre Versignassi Reportagem: Maurício Horta
Na canção I Get Around, os Beach Boys iam de cidade em cidade, arrasando brotinhos a bordo de seu carango que nunca fora batido. Onde
houvesse música jovem nos anos 60 e 70, lá estaria o carro, símbolo
máximo de independência. Beatles com Drive My Car, Deep Purple com
Highway Star. Mas algo mudou. Desde 1990, jovens de países desenvolvidos
como Reino Unido, Alemanha e Japão têm dirigido cada vez menos. O
fenômeno até ganhou um nome japonês - kuruma banare, ou desmotorização.
Uma década depois, veio o impensável: o kuruma banare americano. De 2001
a 2009, os jovens dirigiram 23% menos, andaram 24% mais de bicicleta,
16% a pé e 40% de transporte público nos EUA. Mesmo aqueles com renda
familiar acima de US$ 70 mil anuais dobraram seu gasto com transporte
público de 2001 a 2009.
É verdade que a crise econômica global
tem seu papel aí - sem grana, jovens deixam para depois o casamento, os
filhos e o financiamento da casa própria. Em vez disso, alugam um
apartamento perto do transporte público, do trabalho, das compras e da
diversão - ou simplesmente ficam na casa dos pais e continuam a pegar o
carro do velho, como faziam aos 18 anos. Talvez eles voltem ao subúrbio
quando a economia melhorar. Ou talvez não. Isso porque, junto com a
economia, as aspirações de consumo entre os jovens urbanos de classe
média também mudaram.
"O automóvel passou a ser identificado como
um produto antigo - afinal, seus avós e pais já tinham um carro na
garagem", diz Adriana Marotti, professora da Faculdade de Economia e
Administração da USP e pesquisadora de novas tecnologias na indústria
automotiva. "Além disso, não tem o mesmo apelo tecnológico de
smartphones e tablets, e é considerado vilão em questões ambientais."
Isso, somado aos custos de propriedade do veículo - impostos,
combustível, estacionamento - e à grande disponibilidade de transporte
público, faz o automóvel perder o apelo para os jovens em países
desenvolvidos.
Algo parecido acontece com a casa própria. Nos
EUA, três em cada dez adultos entre 25 e 34 anos moram com os pais, o
número mais alto desde a década de 1950, segundo um relatório do Pew
Research Center. E isso é pouco perto do que acontece na Itália, onde um
em cada quatro adultos entre 30 e 44 anos vive com a "mamma". Com o
financiamento da faculdade, o salário inicial baixo no início de
carreira e a vida de solteiro alargada, voltar para a casa dos pais
depois da faculdade virou o caminho natural. Mesmo entre os que saem do
ninho, o aluguel passa a ser mais atraente do que a casa própria.
Novamente, a culpa não é apenas da crise econômica - o fenômeno, que
pode ser observado em outros países desenvolvidos, começou já nos anos
80, embora tenha se acentuado depois de 2008.
E quais são os
desejos dessa geração? Investir não em coisas, mas em si. O dinheiro que
seria gasto com carro e casa é repartido em cursos (o principal motivo
para americanos não saírem de casa é que estão pagando o financiamento
da universidade), viagens (jovens fazem 190 milhões de viagens
internacionais e, segundo a ONU, isso vai subir para 300 milhões em
2020), shows de música (de 1999 a 2009, a venda de ingressos nos EUA
subiu de US$ 1,5 bilhão para US$ 4,6 bilhões), jantares, espetáculos
bacanas, saltos de paraquedas... O jovem urbanita não precisa
necessariamente de um carro para sair azarando, mas de um smartphone
para saber onde se dará bem e de um táxi ou transporte público para
chegar até lá. Voltemos ao pesadelo do carro. Se somarmos IPVA, seguro e
depreciação de um carro popular, teremos algo por volta de R$ 6 mil em
um ano - sem contar manutenção e combustível. Com esse dinheiro, dá para
comprar uma passagem de ida e volta para a Alemanha (R$ 2 mil), cinco
noites num hotel simples (R$ 500), ter fundos para comer e se divertir
(R$ 1 mil) e, de quebra, mais dois dias de aluguel de um Porsche para
dirigir sem limite de velocidade pelas Autobahnen (R$ 2 500). Agora,
qual foto renderá mais "curtir" no Facebook - você lavando o carro 1.0
na frente de casa ou você ao volante do Porsche alugado? Pois é, o que
conta na hora de compartilhar não é o "eu tenho", mas contar: "Vim, vi e
vivi".
Para ter acesso às coisas sem precisar possuí-las, jovens
começam a substituir a propriedade por serviços ou trocas. Isso deu
espaço para um novo tipo de mercado, que teve seu embrião no fim da
década de 1990, com o compartilhamento de músicas nos tempos do Napster,
encontrou o meio ideal em meados dos anos 2000, com o Ebay e as redes
sociais, e teve finalmente uma motivação econômica com a crise de 2008 -
a economia do compartilhamento. Com a ajuda de sites e apps, é possível
pegar emprestado desde uma serra tico-tico até um apartamento em
Ipanema a preços módicos. O site Airbnb, por exemplo, permite que
pessoas ofereçam para aluguel um imóvel durante a temporada em que não
forem usá-lo - por exemplo, quando estiverem em férias. Fundada em 2008,
a empresa já funciona com mais de 200 mil imóveis em 26 mil cidades de
192 países.
Camaro amareloO funkeiro
paulista MC Danado não parece concordar. Para ele, "vida é ter um
Hyundai". Já a dupla sertaneja universitária Munhoz e Mariano ficou doce
igual caramelo tirando onda de Camaro amarelo comprado com a herança do
véio. "Tá sobrando mulher", conclui a letra da dupla. A verdade é que,
enquanto as economias avançadas veem o declínio da posse, em mercados
emergentes como o brasileiro jovens recém-ascendidos à classe média
estão dispostos a viver seu momento Beach Boys, com atraso de meio século. Eles acabam de ingressar no mercado de
consumo e, pela primeira vez na vida deles e de sua família, podem
comprar bens relativamente caros.
O resultado é que, com 405 mil emplacamentos, o Brasil
superou o Japão em outubro de 2012 como o 3º maior mercado
automobilístico do mundo, atrás de China e EUA. No top 10 estão ainda
Rússia, Índia e Tailândia. É uma indústria que representa 22,5% da
indústria brasileira e 5,2% do PIB, segundo a Associação Nacional de
Fabricantes de Automotores. Não é então de espantar que uma das medidas
do governo federal para evitar um impacto maior da crise no País tenha
sido facilitar o crédito e diminuir o IPI. A economia brasileira é
movida a quatro rodas, e brasileiros gostam disso. Com pouca
disponibilidade e baixa qualidade do transporte público, o desejo de ter
um carro se transforma em necessidade. Já em cidades onde o transporte
público leva o passageiro rapidamente a muitos lugares, sem a dor de
cabeça de enfrentar o trânsito e gastar com estacionamento, ele se torna
uma alternativa mais atraente do que o carro. E com o dinheiro que
sobra ao deixar de comprar um carro, pode-se gastar com outras
aspirações: em vez de levar a moça de Camaro amarelo à lanchonete, ir
com ela de metrô ao restaurante com estrela Michelin.
Uma nova economiaTudo
isso também representa um desafio para os países desenvolvidos. E que
desafio: mudar as bases de suas economias. A indústria automobilística,
por exemplo, sempre foi o pilar econômico da Alemanha, orgulhosa de seus
Audis, Mercedes, BMWs, Porsches e Volkswagens. Com menos gente
dirigindo, esse pilar pode acabar fraco demais para sustentar todo o
resto. A construção de novas casas, apartamentos e prédios de escritório
criou booms imobiliários nos EUA, no Japão, na Espanha. Booms que mais
tarde dariam em bolhas, mas que mesmo assim foram fundamentais para
enriquecer esses países. Com menos gente comprando casa na praia (e
preferindo alugar imóveis que, obviamente, já estão construídos), e
menos gente saindo da casa dos pais, a demanda por casas e prédios novos
também diminui. A construção civil sofre. E mais um pilar tradicional
das economias perde força. E agora?
Bom, talvez a resposta esteja
embutida na própria crise da economia tradicional. Se algumas áreas
definham, outras crescem e aparecem. É o caso dos "serviços conectados",
como o do Airbnb. "Conectados" porque não teriam como existir sem a
internet onipresente de hoje. O que esses serviços novos fazem é
transformar essa onipresença em onipotência - o acesso à rede (e a posse
de um cartão de crédito) já garante casa e carro prét-à-porter em
qualquer grande centro. Mas o fato é que ainda há muito o que expandir
nessa área. Muito a criar. E é nesse terreno fértil e ainda pouco
explorado que podem estar os alicerces de uma nova economia.
MENOS É MAISA posse de bens diminui no exterior. E o dinheiro vai para restaurantes, viagens, shows...
MAIS É MENOSNo Brasil, a tendência ainda é gastar com carrões. E não sobrar muito para o resto.
com atraso de meio
século. Eles acabam de ingressar no mercado de consumo e, pela primeira
vez na vida deles e de sua família, podem comprar bens relativamente
caros.